A COLEÇÃO DE MINIATURAS DO SANDPLAY E SUAS POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES NA RELAÇÃO TRANSFERENCIAL

Quando os terapeutas de Sandplay escolhem figuras para sua coleção de miniaturas; eles frequentemente são guiados por suas preferências pessoais ou por aqueles símbolos que lhe são significativos, que então são oferecidos para seus clientes, que compõem suas próprias imagens psíquicas com este material. Este artigo, baseado em material de pesquisa, reflete acerca das possíveis implicações das escolhas e energias pessoais entre o terapeuta e o cliente e como esta energia inconsciente, quando trazida à consciência pode auxiliar no trabalho terapêutico. Esta reflexão inclui material clínico sobre uma criança e um adulto.
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This article was originally published in the Journal of Sandplay Therapy, v. 25, n.1. p 109-113. 2016. USA. ABSTRACT: When sandplay therapists choose figures for their Sandplay collections, they are often drawn by personal preference or important personal symbols, which they then offer to their clients, who compose their own psychic images with this material. This article reflects, supported by research, upon the possible implications of the personal choices and energies between therapist and clients and how this unconscious energy, when brought to consciousness can be helpful in the therapeutic work. This reflection includes clinical material about a child and an adult.

Artigo originalmente publicado em inglês no Journal of Sandplay Therapy, v. 25, n.1. p 109-113. 2016. USA: Anderson, M. (2016). The Sandplay collection and its possible implications in the transference relationship. https://doi.org/10.61711/jst.2016.25.1.853

“Vale muito mais a pena viver as pequeninas coisas com sentido, do que as maiores sem sentido algum.”

(Jung, 1931/1985a, par. 96)

Ao me mudar do Brasil para os Estados Unidos, a temporária e imposta separação das miniaturas da minha coleção de Sandplay transformou e aprofundou meus sentimentos e percepções em relação a elas. Dizer “adeus” temporário a cada miniatura que eu havia colecionado com carinho ao longo de dez anos foi a parte mais dolorosa da mudança. Até então, eu só estava parcialmente consciente do tempo e da energia (sem mencionar o investimento financeiro) investidos em minha coleção, e de como, ao longo dos anos, ela havia se vinculado profundamente à minha vida profissional. Ao segurar cada uma das miniaturas nas mãos, embalando-as para protegê-las de danos, senti uma bem-vinda reconexão tátil com elas e, ao mesmo tempo, tristeza, perda e separação. Deixei minhas mãos correrem pela areia — a terra do país onde me tornei psicóloga, analista junguiana e terapeuta de Sandplay. Dei-me conta, então, que eu não estava apenas identificada com minha coleção, mas também com a própria areia, e de que, juntas, elas constituíam minha prima materia profissional. Só mais tarde, já vivendo nos Estados Unidos, à medida que atravessava o doloroso processo de obtenção da licença profissional, entendi que aquela perda temporária também simbolizava as perdas não previstas da minha identidade profissional, da minha criatividade e do meu status como psicóloga clínica.

Jung afirmou que “Na análise clínica constatou-se que os conteúdos inconscientes se manifestam sempre, primeiro, de forma projetada, sobre pessoas e condições objetivas” (1946/1985b, par. 357) e, podemos acrescentar, sobre objetos também. Ele observou que “médico e paciente se encontram, assim, numa relação fundada na inconsciência mútua” (1946/1985b, par. 364). No entanto, apesar de a teoria junguiana ser a base do meu trabalho, tanto na terapia verbal quanto na terapia de Sandplay, na verdade, eu não tinha suficiente clareza em termos da compreensão teórica sobre o papel da coleção de miniaturas na relação transferencial. Minha tese de doutorado (Anderson, 2013) deu-me a oportunidade de investigar essa questão. Conforme o tema emergia, ganhei mais consciência do apego à minha coleção e dos sentimentos de perda. A “Investigação Heurística”, método qualitativo que escolhi, proporcionou-me a oportunidade única de explorar não apenas a relação afetiva dos participantes com suas próprias coleções, mas também um mergulho pessoal profundo no material. Sou grata pelas contribuições de quem participou da pesquisa (Anderson, 2013).

O modelo de transferência e contratransferência de Mario Jacoby (1984) aborda os vários canais de comunicação presentes na relação entre analista e analisando: a comunicação consciente entre ambos (geralmente entendida como terapia), mas também as conexões entre o inconsciente de ambos nos níveis interpessoal e intrapsíquico, conforme compreendido na psicologia profunda. Em “A Psicologia da Transferência” (1946), Jung adverte sobre os laços inconscientes profundos, em razão dos quais o analista “é afetado, e tal como paciente, dificilmente consegue diferenciar-se daquilo que o possui” (1946/1985b, par. 375).

O que acontecerá quando os simbolismos conscientes e inconscientes das miniaturas do Sandplay se encontram no inconsciente? Certamente mensagens conscientes e inconscientes estarão presentes em todos os níveis e combinações possíveis. Frequentemente, terapeutas de Sandplay inconscientemente sentem-se atraídos por determinadas miniaturas, e após incluí-las em suas coleções, seus clientes podem escolher as mesmas miniaturas por razões igualmente inconscientes. Portanto, a comunicação de inconsciente para inconsciente é especialmente interessante, enigmática e difícil de acessar. Podemos intuir “algo”, não sabendo exatamente o que está sendo expresso. Como disse Jung, “a transferência está longe de ser um fenômeno claro e preciso e em hipótese alguma se consegue descobrir de antemão tudo o que ela significa” (1946/1985b, par. 362).

Nós, terapeutas, incentivamos os clientes a escolherem das prateleiras as miniaturas que os atraem, mas em geral não temos consciência de que um processo semelhante governou o que nos levou a escolher tais miniaturas — ou, a propósito, como nós, terapeutas, fomos escolhidos por elas também. Muitos itens da nossa infância, de nossos filhos, amigos, colegas ou mentores, acrescidos ao longo dos anos são pessoalmente significativos em cada coleção de Sandplay. Nossos critérios de seleção variam de um impulso de “preciso ter essa peça” à atração por alguma figura, que achamos bonita, acessível, adequada para a coleção ou apropriada para o psiquismo dos nossos clientes. Predeterminamos o que é necessário, útil ou aceitável para eles. Como resultado, os clientes trabalham com figuras pré-selecionadas pela psique do terapeuta. Nossas miniaturas, figurativa e simbolicamente, oferecem os recursos básicos para a expressão psíquica dos clientes na areia.

INVEJA E PODER

Nas conferências sobre Sandplay, é interessante observar o comportamento dos participantes nas mesas dos vendedores de miniaturas. Os terapeutas correm para encontrar peças novas e incomuns, movidos não apenas pelo desejo de oferecer uma coleção mais completa a seus clientes. Além de nossa própria insaciabilidade, podemos sentir — consciente ou inconscientemente — cobiça das figuras dos colegas apresentadas em casos clínicos. Esse lado sombrio, que eu chamaria de “inveja das miniaturas”, frequentemente não é conscientemente reconhecido no ímpeto da aquisição, quando não pensamos nas razões ou significados mais profundos por trás de uma compra.

Os próprios clientes também podem sentir inveja. Em minha experiência, as crianças demonstram inveja de forma mais espontânea; comparam e competem com o que temos, mas, com frequência, manifestam seu descontentamento abertamente por meio do uso que fazem da coleção, possivelmente ao destruir miniaturas. Os adultos, por sua vez, tendem mais a fazer comentários depreciativos ou críticos sobre a coleção ou sobre uma miniatura específica e, às vezes, completamente ignorando a existência de uma coleção no consultório. O tema da inveja na sala de Sandplay merece uma reflexão mais aprofundada.

Questões de poder podem surgir quando uma pessoa é proprietária das miniaturas e outra as utiliza à sua própria maneira, frequentemente de forma diferente do que o proprietário imaginava, pretendia ou permitiria. O dono das miniaturas (terapeuta) as oferece de forma generosa — e, muitas vezes, de modo inconsciente, não tão generosamente assim —, mas talvez espere algo em troca. Essas constelações de poder implícitas — e a exploração desse tema ainda está longe de ter sido esgotada — podem ativar fortemente o campo transferencial e, com frequência, permanecem inconscientes.

ELIAS E MARILYN MONROE

Certa vez comprei uma linda figura da Marilyn Monroe no norte do Brasil e a incorporei orgulhosamente à minha coleção. Poucos dias depois, Elias, um menino de nove anos, utilizou a peça. Meu sentimento mudou rapidamente — de felicidade por ver a figura sendo usada, para horror. Elias expressou aspectos de seu complexo materno negativo enfiando vigorosamente o rosto da figura na areia molhada e, em seguida, enterrando-a junto com Cruella (Figura 1, Figura 1a e Figura 2). Fiquei paralisada, observando suas furiosas tentativas de enterrar a mãe sedutora enquanto tentava – sem sucesso – convencer a mim mesma de que a miniatura era apenas uma ferramenta de trabalho, uma expressão de sentimentos no processo clínico e, portanto, poderia ser danificada

Figura 1
Figura 2: Marilyn Danificada
Figura 1a

Esses pensamentos contrastavam com um forte sentimento de decepção, pois eu tinha certeza de que não encontraria outra figura igual.

Foi necessário um grande esforço consciente para não descarregar minha frustração em Elias. Eu compreendia o que ele estava fazendo e por que ele precisava enterrar aquela figura, mas ele também havia literalmente danificado a minha miniatura especial. Naquele momento ambivalente, eu ofereci a ele um “espaço livre e protegido” para revelar e trabalhar suas dificuldades com a mãe, mas também fui afetada de forma concreta: a mãe destrutiva e negativa ficou permanentemente gravada na miniatura de Marilyn Monroe — e em meu coração.

Muitos anos depois, uma cliente, também marcada pelo complexo materno negativo, ofereceu-se para repintar o rosto arranhado da Marilyn Monroe. Ao acreditar em sua capacidade artística, aceitei o gesto, que se revelou significativo tanto para sua autoestima quanto para seu processo de cura. Haveria muito mais a explorar sobre esse momento específico no percurso terapêutico dessa cliente, em que tal atitude se tornou possível, mas esse é um tema que ficará para outra ocasião.

Figura 3: Marilyn Restaurada

CAROL E A SEREIA

O envolvimento inconsciente profundo do terapeuta também pode nos presentear com situações especiais e positivas — que, naturalmente, são muito mais fáceis de lidar. Consideramos preciosos os momentos em que temos a honra de partilhar uma energia numinosa. Ficamos profundamente tocados quando os clientes usam nossos mais estimados itens e quando aqueles que possuem uma conexão sutil conosco encontram essas miniaturas em nossa coleção. Nossa conexão mútua, na “cotransferência” (Bradway, 1991, p. 99), torna-se então visível por meio de um objeto. Aquilo que eu, terapeuta, amo, também é amado e usado pelos clientes, muitas vezes ocupando um lugar de destaque em suas cenas na caixa de areia.

A sereia era um símbolo muito importante em meu próprio processo, e uma sereia segurando uma pérola nas mãos foi a primeira figura que comprei conscientemente para minha coleção (Figura 4). Para mim, essa figura representava uma transformação no âmbito do feminino e a possibilidade de que antigos ressentimentos ou feridas, com o tempo, pudessem se transformar em uma pérola de valor — “um tesouro difícil de alcançar”, como mencionado por Jung (Jung, 1916/1990, par. 510). Apesar de essa miniatura ser tão especial para mim, os clientes nunca a escolheram, preferindo outras sereias existentes nas prateleiras.

Figura 4: Sereia

SEREIA

Um dia, Carol, uma cliente muito querida de 30 anos, trabalhou com grande concentração na construção de um monte central.  De onde eu estava sentada, não conseguia ver o que ela fazia, mas a cena parecia muito misteriosa. Ela foi até as prateleiras e cuidadosamente trouxe miniaturas nas mãos em concha. Quando terminou, convidou-me para olhar mais de perto. Mais uma vez fiquei sem fôlego, mas dessa vez porque estava profundamente comovida. Ela havia cavado uma caverna no centro do monte e colocou “minha sereia” ali dentro, acrescentando uma lâmpada e um caldeirão sobre uma fogueira. Era como se estivéssemos contidas em uma esfera cheia de reverência — sem palavras, mas com o conhecimento de que algo muito importante estava sendo revelado).

Cinco semanas depois, Carol — cuja queixa principal eram crises de pânico e sua preocupação com a infertilidade — comunicou que havia concebido. Imediatamente nos lembramos dessa cena da caixa de areia, e segundo os cálculos dela, estava com cerca de dois dias de gestação quando criou aquela cena. Para mim, a figura da sereia representava nascimento e novos começos em minha vida como mulher. Por meio de nossa forte conexão, ela havia escolhido esse símbolo, tão especial para mim, expressando seu próprio começo fértil como mãe — o que havia sido a sua mais desejada forma de expressão criativa.

TOCAR

Tocar as miniaturas parece ter um efeito sobre o campo energético (Hegeman, 1996; Sugatt, 2001), vivificando nossas miniaturas quando cuidamos delas (Anderson, 2013). A conexão energética entre os clientes, que usam — sem saberem — figuras ao mesmo tempo utilizadas por outros clientes, de maneira significativa, também é um tema fascinante para nós, terapeutas (Cambray, 2001; Chiaia, 2001, 2005). Experiencio o campo energético como algo que também parece impregnar as figuras, de tal modo que certas imagens nos lembram de antigos clientes, cujos processos são eternizados em nossas prateleiras por meio das figuras que foram significativas — e, portanto, energizadas — em seus processos (Anderson, 2013).

APROXIMANDO-SE DO MISTÉRIO

Experiencio as energias pessoais conectadas e expressas por meio da minha coleção, assim como a fascinante relação com o mistério, como uma bênção e um convite aberto para acolhê-las, aceitá-las e compreendê-las conscientemente em nosso trabalho terapêutico. Sinto-me privilegiada por estar em contato diário com essa energia e essas possibilidades intermediadas por minha coleção de miniaturas. Fiquei feliz em constatar que muitos terapeutas de Sandplay amam trabalhar na presença energética de suas coleções (Anderson, 2013). Como essas percepções e fatos são mais assimilados intuitivamente, incentivo todos os terapeutas de Sandplay a seguirem o conselho de Jung e explorarem mais conscientemente sua própria profundidade em seus processos terapêuticos pessoais (1946/1985b), mergulhando, vivenciando e compreendendo a rica simbologia das miniaturas em nossas prateleiras — e explorando esse campo, em grande parte desconhecido, da transferência que se manifesta por meio de nossas coleções.

Conexões (Anderson, 2013) Pintura com colagem

REFERÊNCIAS

Anderson, M. (2013). Working with the pieces of the analyst: The relationship of the sandplay therapist to the sandplay miniature collection (Doctoral dissertation). Pacifica Graduate Institute. https://search.proquest.com/docview/1468679014

Bradway, K. (1991). Transference and countertransference in sandplay therapy. Journal of Sandplay Therapy, 1(1), 93–101. https://doi.org/10.61711/jst.1991.01.1.227

Cambray, J. (2001). Enactments and amplification. Journal of Analytical Psychology, 46(2), 275-303. https://doi.org/ 10.1111/1465-5922.00237

Chiaia, M. E. (2001). Meeting and creative emergence: The silent interpenetrating mix of therapist and patient. Journal of Sandplay Therapy, 10(2). https://doi.org/10.61711/jst.2001.10.2.831

Chiaia, M. E. (2005). Rhythms and resonances of uncertainty. In J. W. Perry, The far side of creativity, the near side of madness (pp. 8–32). C.G. Jung Institute of San Francisco.

Hegeman, G. (1996). Spring cleaning. Journal of Sandplay Therapy, 5(2), 13–16. https://doi.org/10.61711/jst.1996.05.2.420

Jacoby, M. (1984). O encontro analítico (M. Luchetti, Trad.). São Paulo: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1984)

Jung, C. G. (1985a). Os objetivos da psicoterapia. In C. G. Jung, A prática da psicoterapia,Obras Completas 16/1(par. 66–113). Vozes. (Original publicado em 1931)

Jung, C. G. (1985b). A psicologia da transferência. In C. G. Jung, Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência, Obras Completas 16/2(par. 353-401). Vozes. (Original publicado em 1946)

Jung, C. G. (1990). Símbolos da transformação: Uma análise do prelúdio de um caso de esquizofrenia. Obras Completas 5. Vozes. (Original publicado em 1916)

Sugatt, S. S. (2001). Thoughts on cleaning up. Journal of Sandplay Therapy, 10(2). https://doi.org/10.61711/jst.2001.10.2.448

Minicurrículo:

Marion Anderson, Phd.: Possui certificação como terapeuta e professora de Sandplay, tendo obtido seu PhD em psicologia clínica pelo Pacifica Graduate Institute. É membro docente da STA (Sandplay Therapists of America) e da ISST (International Society for Sandplay Therapy), Membro fundadora do Instituto Brasileiro de Terapia de Sandplay. Possui formação como analista junguiana pela SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica). É membro analista do Instituto C. G. Jung de Los Angeles e da IAAP (International Association for Analytical Psychology).