Artigo originalmente publicado em inglês no Journal of Sandplay Therapy, v. 20, n. 2, p. 41- 63, 2011, USA
As experiências dos alquimistas eram, num certo sentido, as minhas próprias experiências, e o mundo deles era, num certo sentido, o meu.
(Jung, 1975, p. 205)
A meta só importa enquanto ideia, o essencial é a opus que conduz à meta.
(Acta S. Joannis)
Uma das características da obra alquímica é a formação de um par, realizando a união dos opostos, o casamento alquímico, que se perpetuará até o final da obra. Há, entre outros, um par de operadores: o alquimista e a soror mystica, a consciência masculina e o inconsciente feminino. Esses pares de opostos encontram-se no paciente, e, durante o processo terapêutico, por meio do trabalho das questões relativas à transferência – conteúdos inconscientes projetados no terapeuta –, ocorrerá a mistura, que deverá ser separada, possibilitando a cura.
No contexto terapêutico, essas polaridades simbólicas se alternam, tanto no terapeuta como no paciente, de forma que solvente e dissolvido sempre caminham juntos, libertando-se das singularidades da matéria e, ao mesmo tempo, fortalecendo o espírito. O paciente expressa, por meio das imagens, suas emoções, sentimentos, pensamentos e intuições, que se misturam na caixa de areia, formando o caos inicial, o portador de todas as possibilidades e potencialidades do vir-a-ser. Mas, para que isso se realize, é preciso que essa prima materia seja processada dentro do vaso alquímico e, assim, consiga alcançar a totalidade e a saúde.
A obra alquímica é composta de três estágios:
Nigredo é o estágio em que a prima materia é dissolvida, putrefeita e levada ao sofrimento. É o caos inicial, simbolizado pela cor negra. Para entrar nessa etapa e tornar escura uma substância, as operações podem ser: solutio, separatio, putrefactio, calcinatio, mortificatio. A ação, nesse estágio, é reproduzida lentamente várias vezes e tende a solidificar ou pulverizar a substância.
O estado psíquico é depressivo, propenso a ideias de fracasso e morte. O paciente apresenta autocrítica severa e destruição das antigas estruturas. É um estágio de muita comoção, angústia, amargura e dissociação das energias. Implica dor psíquica. É o momento do confronto com a sombra. Nas fábulas e mitos que fazem parte do imaginário arquetípico, observamos que o negro indica a putrefação, a morte, o luto, o túmulo, o pássaro preto (melro), o corvo, as trevas, o eclipse solar etc.
Albedo é o estágio em que a substância é purificada; estado lunar ou de prata. É simbolizado pela cor branca, e suas operações são separatio, purificatio ou sublimatio. A ação, nessa etapa, compreende lavar, separar, categorizar, moer ou transformar em pó muito fino, quase um gás, um vapor.
O paciente passa a compreender suas emoções, ganha clareza mental e emocional. Há discriminação e ampliação da consciência. Pode ocorrer o confronto com a contraparte sexual anima-animus. Há uma participação crescente da consciência, gerando um acalorado conflito com os conteúdos produzidos pelo inconsciente, conflito esse que provocará a síntese dos opostos no próximo estágio.
Na albedo, o movimento é circular. Visitamos e revisitamos temas velhos conhecidos, arranjando-os de uma nova maneira, sob um novo entendimento. Adiantamo-nos em nossa jornada. São passos dados à frente. Saímos das sombras e atingimos a luz. Passamos da imobilidade ao movimento, do caos à consciência. O estágio da albedo simboliza crescimento, desenvolvimento e autoconhecimento, mas traz consigo um aspecto de estado ideal e perfeito e, em vista disso, pede vida e sangue para trazer a experiência para o nível humano novamente.
Rubedo é a elevação do fogo à sua maior intensidade. É o estágio final. É simbolizado pela cor vermelha e suas operações são: coagulatio, coniunctio, multiplicatio. Para se realizar a rubedo, é preciso que o sangue dissolva os últimos resquícios da matéria negra, dê vida ao branco, ganhando movimento. A ação é necessária. É preciso mergulhar, estar ativo, em um movimento espiral, para alcançar a integração. O paciente experimenta emoções intensas. É preciso compreender e incorporar os fatos externos da vida e as vivências psíquicas internas e, desse modo, transformar-se em um ser completamente integrado: “eu” e Si-mesmo mantendo um diálogo constante e fluente.
A rubedo, para os alquimistas, é o momento em que se alcança a Pedra Filosofal. É resultante da integração final dos opostos purificados: masculino e feminino, espírito e matéria, micro e macrocosmos, recompondo-se, dessa forma, a unidade. A rubedo, quando se atingem as bodas reais, é um fato arquetípico, uma imagem presente no inconsciente coletivo e uma possibilidade a ser realizada.
No processo de individuação, passamos um longo período debatendo-nos, vivendo o conflito das oposições, as quais só conseguiremos integrar após experimentarmos e reconhecermos profundamente nossos conflitos. Esse momento, em que nos submetemos à experiência de viver as oposições, é a coniunctio. É o momento de atuar em nossa vida e no mundo, de forma madura e equilibrada,com os conhecimentos adquiridos ao longo da nossa jornada interior.
Tomo por base o pensamento desenvolvido por Edinger em seu livro Anatomia da Psique (1995). Focalizarei as principais operações ao redor das quais se estrutura o processo de desenvolvimento psíquico e que podem ser facilmente observadas nas imagens dos cenários do Sandplay: calcinatio (calcinar, fixar), solutio (dissolver, derreter), coagulatio (coagular, solidificar), sublimatio (sublimar), mortificatio (matar, destruir), separatio (separar) e coniunctio (unir).
Por meio do caso clínico de um paciente, aqui apresentado com nome fictício, abordarei os símbolos que ilustram a operação alquímica mais importante presente em cada cena. Portanto, o cenário não será analisado em sua totalidade. As cenas estão apresentadas respeitando a sequencia numérica original para que o leitor tenha noção do ritmo do processo terapêutico. Os comentários do paciente estão citados entre aspas. É importante frisar que qualquer operação pode inicializar o processo – isso é definido pelo momento que está sendo vivido pelo paciente – e não é necessário que todas as operações estejam presentes em um processo individual.
João, de 27 anos, advogado e gerente de negócios, busca a psicoterapia por sentir-se deprimido, ansioso e tenso com as questões familiares. Seu pai, de origem simples, obteve sucesso financeiro. Gasta compulsivamente, foi alcoolista e está abstêmio há anos. Sua mãe, ao aposentar-se, procura situações para afastar-se da vida familiar conflituosa. João tem um irmão que é dependente químico severo. A esquizofrenia e depressão estão presentes em ambos os lados parentais. O paciente namorava com a “melhor amiga dos tempos da escola”, mas, de vez em quando, fazia-se presente uma compulsão sexual, e João buscava experiências sexuais arriscadas.
Cenas Iniciais de Sandplay
Para melhor compreensão do caso, apresento dois cenários iniciais.
Na Cena 1 (Figura 1), João coloca um índio, mas diz que este representa “um samurai observando um grande espaço aberto”. Conta que visualizou essa cena após a entrevista que fez comigo. Dessa forma, sinaliza que, do ponto de vista da transferência, sente que ali se abriu um espaço para ele. Associa o samurai à ética. João busca algo que lhe dê limites e segurança. Diz que tem medo de si mesmo e da “loucura familiar”. Em sua vida, sempre buscou mecanismos de proteção que compensassem sua família disfuncional, na forma de instituições rígidas que dessem contenção e estrutura: estudou em escolas muito tradicionais, cursou Direito – símbolo da justiça, da lei e da ordem – e, voluntariamente, fez o serviço militar.
Na Cena 2 (Figura 2), João associa o porta-mísseis armado (canto superior direito) à sua fase agressiva e violenta (dos 12 aos 19 anos) contra o irmão dependente químico. A família dizia que ele estava ficando louco e ele, em tom confessional, diz “sempre tive medo de ter uma falta de caráter ou uma doença”. Coloca um bebê usando fraldas deitado na porta de uma casa de madeira e, no centro da cena, posiciona, o sol. Conta que sempre teve sonhos grandiosos e ambiciosos. Quando criança, queria ser presidente do país ou um político de destaque envolvido com o bem coletivo.
João se identifica com o irmão e nele projeta a sua falta de ética e suas transgressões. É como se estivesse sob um ataque do mundo interno e externo. Nesse momento, as defesas do “eu” se mobilizam e levam à organização de um falso self narcísico – refúgio psíquico na onipotência infantil.
Purgar, purificar e discriminar
Calcinatio é o processo de aquecimento de um sólido para extrair água e outros elementos voláteis. O resultado dessa prova de purificação é o pó seco equivalente ao sal, que simboliza Eros – a ligação –, indicando a passagem para o próximo estágio alquímico: a albedo.
Edinger, sob o ponto de vista místico, divide o fogo em dois tipos: terrestre, Logus, a dor do desejo frustrado; e etéreo, “Espírito Santo”, quando conectado com o aspecto transpessoal da nossa existência. Jung (1952/1986) afirma que a libido – a energia psíquica – é simbolizada pelo fogo. Nessa operação, é preciso suportar um afeto intenso para que ocorra a purificação e a consolidação. É o confronto com a sombra, que atende aos desejos e instintos do lado primitivo, contaminando o indivíduo pelo inconsciente. O fogo purgador origina-se das frustrações desses desejos, que trazem consigo sentimentos de tristeza, desespero, culpa e arrependimento, cuja expressão pode liberar o complexo da contaminação inconsciente. Neste ponto, é importante enfatizar que é fundamental a consciência do conteúdo psíquico, pois a calcinatio requer o aquecimento interior do corpo (Edinger, 1995).
Mas é preciso cuidado no processo terapêutico, pois a precipitação do terapeuta pode causar corrosão em vez de calcinação. Caso não exista um vínculo suficientemente forte para criar a frustração sem destrutividade, o resultado será desgaste, decomposição e destruição.
Edinger (1995), no capítulo 2, indica que podemos observar essa operação nas imagens que contenham fogo queimando: velas acesas, fogueiras, incêndio, queimadas, lareira acesa, fogão à lenha aceso, fósforos acesos etc. Segundo Dora Kalff (2003), a transformação que acontece no fogo intenso – calcinatio – ganha mais um atributo: a vitalidade renovada com uma energia intensificada, que geralmente é acompanhada por fortes emoções. Isto é o que observamos na Cena 4 (Figura 3).
João dá à cena o título de “Combustível” e, em seus comentários, afirma que “se sente motivado”, mas experimenta também “medo e a sensação de estar diante do desconhecido”. Comenta, ainda: “[estar] agitado, ansioso, muito mexido, como se eu estivesse fazendo uma limpeza. Sinto-me atraído por este cenário”.
Naquele momento, João havia terminado o namoro e voltado para a casa dos pais. Conta que sente a sua casa “doente” e que as pessoas não conversam umas com as outras. Os pais não se relacionam há dois anos e têm vidas separadas. Sua mãe guarda tudo obsessivamente e desconfia que o marido tenha uma relação extraconjugal.
João personifica-se como o Han Solo da série Guerra nas Estrelas – um mercenário que muda para o lado do bem passando a ser aliado do herói. Posiciona a figura masculina sentada olhando para duas figuras femininas: Branca de Neve e a sereia Ariel. A relação entre masculino e feminino é inviável, e há uma idealização de ambos – é preciso fazer a secagem dos complexos inconscientes.
No canto superior esquerdo, João coloca um grande depósito de combustível com o avião Nighthawk, que tem como característica ser invisível aos radares, voltado para o dirigível e a figura masculina. João associa esses elementos à esquizofrenia e à forma como a doença se manifesta. No canto oposto, há um caminhão de combustível ao lado de um avião de passageiros, denunciando o conflito e o sentimento de forças em desequilíbrio.Apesar de a cena não conter explicitamente figuras que denotem o fogo, é marcada por elementos que produzem combustão e têm a propriedade de arder.
João associa a serpente ao vício de seu pai e irmão e, nesse momento, refere-se, pela primeira vez, à sua compulsão por sexo com riscos. Encerra a cena comentando: “me sinto como se estivesse fazendo uma limpeza”. Enfrentar a realidade e a calcinatio dos desejos frustrados é o caminho para o efeito purgador e purificador.
A separatio resulta na divisão em dois, pois, a princípio, o indivíduo oscila entre os opostos, não conseguindo fazer uma escolha. Caso permaneça nesse estado de divisão, uma neurose poderá eclodir. Todavia, se a pessoa adquirir a consciência dos opostos – sujeito-objeto ou eu-não-eu –, cria-se um espaço intermediário e, dessa forma, o indivíduo passa a ter condições de recolher suas projeções à medida que vai adquirindo consciência e acolhendo os opostos dentro de si.
A separação do espírito da matéria – corpo e alma – remete-nos à experiência da morte, no nível concreto ou psicológico. Em ambos os casos, seremos conduzidos a um aumento da consciência e da percepção do Si-mesmo, fato impulsionador do processo de individuação.
Edinger (1995), ao longo do capítulo 7, exemplifica, como imagens simbólicas de Separatio: facas, lâminas, foices, espadas, fios de navalha, compassos, réguas, sextantes, esquadros, escalas, fios de prumo, balanças. Objetos para medir, contar, pesar. Também aponta: morte (como a separação de um ente querido), órfãos (separação dos pais pela morte), viúvas (separação do marido), divórcio e o juízo final (julgamento após a morte). Tais imagens podem facilmente ser observadas nos processos de Sandplay.
João voltou a namorar e comenta: “fui fraco e não consegui continuar dizendo não”.
A Cena 5 (Figura 4) recebe o título de “O cérebro”, e João diz que essa imagem lhe causa estranheza. Inicia a cena fazendo buracos, preenchendo-os com água e posicionando diversas divisórias com cercas e muros. É importante frisar que, no canto superior esquerdo, onde havia o grande depósito de combustível, simbolizando a doença familiar, o paciente agora coloca um mago e a Deusa Bastet dentro de um cercado forte e alto. Bastet era a deusa egípcia da guerra associada às pestes e um símbolo utilizado pelos médicos para anunciar a capacidade de cura. João busca proteção da sina familiar que tanto o apavora.
Posiciona o grande coral, chamando-o de “cérebro”, no local em que estava simbolizado o complexo (Han Solo, Branca de Neve e Ariel). Observamos, nessa cena, o agente da separatio, que busca a discriminação, o discernimento e o julgamento, a habilidade de se dividir, nomear, categorizar, dissecar e diferenciar.
A união imperfeita e a morte necessária
A coniunctio tem três etapas:
- Unio mentalis – objetiva alcançar o conhecimento da própria luz e sombra. É a nossa realidade cotidiana;
- Unio mentalis & corpo – consciência do paradoxo de que o homem é mais do que imagina. O indivíduo está em um estágio avançado de seu processo de individuação;
- Unus mundus – última etapa da coniunctio. É experimentada somente por breves momentos. Simbolizada pela mandala, é a realização da Pedra Filosofal.
Em seguida, podemos observar a busca da coniunctio na Cena 8 (Figura 5).
No dia em que compôs essa cena, ao chegar ao estacionamento do meu consultório, João vê meu filho despedindo-se de mim. Ao adentrar a sala, ele já vai dizendo: ”Aquele moço é o seu filho… Ele tem a minha idade? ”Fica pensativo e afirma categórico: “você não seria a minha mãe!” João deixa evidente o contexto de transferência erótica. Nesse período, João tem se entregado à sua compulsão sexual.
João dá título de “Campo aberto” a essa cena e diz ter sentido “um pouco de medo ao colocar as cobras, mas, ao mesmo tempo, uma singeleza, uma coisa pura e bonita”. Ele coloca a figura masculina ajoelhada com duas serpentes ao lado e diz: “senti um pouco de medo, como se algo do passado pudesse me abater”. Na outra extremidade, está Branca de Neve cercada de vasos de flores – para ele, símbolo de um mar de possibilidades. Entre os dois, há um presente dourado. A areia é arrumada cuidadosamente, fazendo sulcos indicando um caminho.
Essa cena ilustra a união imperfeita dos contrários –coniunctio inferior– que cria a necessidade de novas operações alquímicas, pois o resultado obtido não é satisfatório, porquanto as substâncias não se separaram totalmente. João continua identificado com conteúdos inconscientes – a anima. Tal situação irá exigir a morte e a separação. O Eros, a conexão ou o amor, é fundamental, como causa ou efeito, para que a coniunctio de realize. A coniunctio inferior origina-se da união de substâncias impuras e sem discriminação, como o desejo sexual intenso que João tem experimentado.
A união perfeita denomina-se coniunctio superior, pois seu resultado é a união dos contrários já purificados, diminuindo e corrigindo as diferenças, resgatando a unidade, que pode ser denominada Pedra Filosofal.
O amor transpessoal cria a coniunctio superior, ou é por ela criado. Esse amor é purificado do desejo pessoal. Não é um dos lados do par, estando além disso. É o aspecto extrovertido da coniunctio que fomenta o interesse social, enquanto o aspecto introvertido refere-se à conexão com o Si-mesmo.
Edinger (1995), no capítulo 8, cita, como exemplos de coniunctio inferior, imagens que apresentam os seguintes símbolos: união de animais, casamento de pessoas comuns, relações sexuais, estupro, conexões, correntes, cordões, fios conectores, associações, servidão, prisão e/ou vínculos com a igreja, com a família ou com uma corporação. Imagens que representam lealdade e fidelidade a algo, identidade coletiva. A coniunctio superior é observada por meio dos símbolos: casamento do rei e da rainha, do céu e da terra, do sol e da lua. Podemos observar esses símbolos nas imagens de Sandplay.
Amortificatio e a putrefactio são dois momentos da mesma operação. São projeções de uma imagem interna, em que a matéria é personificada e torturada até a morte. Putrefactio é o processo de decomposição, o apodrecimento da matéria, e a mortificatio representa rigorosamente a morte.
Apesar de essa operação estar ligada à derrota, à tortura, à mutilação, ao apodrecimento e à morte, essas imagens enegrecidas, símbolos do confronto com os aspectos sombrios, possibilitam a passagem para o crescimento e o renascimento. A mortificatio inicial simboliza o período perigoso e contaminado, pela anima ou pelo animus, em que os afetos e as exigências desmedidas precisam morrer para que a energia psíquica se descontamine do primitivismo e se transforme.
Em outro momento, a mortificatio volta-se para o instinto de poder do “eu” – é a morte pelo excesso e pelo egocentrismo – para que este possa ressurgir modificado e mais centrado. É o sacrifício, na medida em que o “eu” abraça a morte, constela a vida profundamente, segundo Edinger (1995). Essa operação é observada na cena 9(Figura 6).
Figura 6 – Cena 9 com figura em destaque
João dá a essa cena o título de “Desorientação e confusão”. Sobrecarrega a caixa, primeiro colocando as figuras de forma ordenada e cuidadosa, mas, em um segundo momento, dispondo-as de modo agressivo e descuidado. Diz: “quando terminei o cenário, senti um pouco de vergonha. No final, era como se eu quisesse descarregar, como se eu quisesse soltar algumas coisas”.
Nesse momento, João vivia mais uma perda, um parente, portador de esquizofrenia, suicida-se. Seu irmão é internado novamente por overdose.
Na primeira etapa da montagem da cena, há uma cabana no centro da caixa e, dentro dela, embaixo de uma peneira, está a figura do Han Solo. Pelas duas janelas, João introduz diversas serpentes dentro da cabana e, sobre esta, a maior delas. Em frente à porta da cabana, João coloca a figura de Hércules e, na frente dele, a máscara da persona do teatro. Dispõe muitos veículos de terra e ar como se estivessem puxando em sentidos contrários (a minha sensação é que estou vendo a execução da figura masculina pela prática medieval de desmembramento).
Esse é o momento do confronto com a sombra. Há um sentimento de impotência diante da dor da família. Também aparecem o medo aterrador que sente diante da sina familiar e a raiva imensa, pois, para ele, é como se fosse só uma questão de tempo para ser atingido por esse castigo.
A Cena 10 (Figura 7) ilustra a operação putrefactio. João não dá um título a essa cena. Diz: “sinto muita angústia, desamparo e medo da loucura. Tenho medo que aconteça comigo. Foi horrível ver meu irmão ser internado à força, mas eu sei que não havia outro jeito…”
João molha a areia e faz um monte no centro da caixa, onde vai enterrando as serpentes. Faz buracos com a ponta dos dedos para deixar as cabeças delas para fora. Depois disso, molha bem a areia com um regador. E diz: ”às vezes fico pensando que a coisa está muito perto… Minha vontade é de enterrar tudo… Mas não dá!”.
A transformação é uma fase dolorosa, mas de entrega. Sabe-se que, depois dessa etapa, há uma fertilização do terreno para que o novo possa surgir. Jung (1952/1986) afirma que o encontro com o inconsciente é sempre vivido como uma sofrida derrota, pois a integração dos conteúdos sombrios (que antes eram projetados) significa uma certa humilhação do eu, que, após uma série de derrotas, submete-se ao Si-mesmo.
A putrefactio tem relação com o fogo interno que leva à decadência, a uma fantasia de desintegração. Acontece uma desconstrução, acompanhada da sensação de confusão, pois as fixações e compulsões tão arraigadas começam a não se manifestar da mesma forma.
Seguindo o pensamento de Edinger (1995), no capítulo 6, podemos observar a mortificatio nas imagens que apresentam os seguintes símbolos: velho enfermo, enterros, morte, cadáveres, urubus, corvos, esqueletos, cemitérios, sepulturas, cor negra predominante, a Via Crucis, dragões, sapos, reis, leão, sol etc. E aputrefactio manifesta-se nas imagens que contenham: fezes, excrementos, personificações de mau cheiro, vasos sanitários sujos, vermes, carniça, animais ou humanos em decomposição.
Renascimento
Em solutio, a matéria sólida dissolve-se no solvente, que transforma sólido em líquido. Há um retorno ao estágio original indiferenciado – a água, a prima matéria. A água é o material primordial que deu origem ao mundo, portanto, é equivalente ao útero.
Edinger sintetiza a solutio em sete principais aspectos simbólicos: (1) retorno ao útero; (2) dissolução, dispersão e desmembramento; (3) conteúdo e continente; (4) renascimento, imersão no fluxo de energia criadora; (5) prova de purificação; (6) solução de problemas e (7) processo de derretimento ou suavização (Edinger, 1995).
Essa operação simboliza o retorno ao útero materno para um renascimento, pois, por meio dessa regressão, os aspectos rígidos e cristalizados serão dissolvidos. Vivencia-se o conceito de conteúdo e continente, bem como o relacionamento entre o simples e o complexo, que abrange os opostos, fazendo com que o simples se torne um mero receptor de impressões e influências, dissolvendo-se e entrando em solutio. O agente da solutio é o Si-mesmo, é o confronto do “eu” com o inconsciente.
O risco dessa operação para o “eu” imaturo constitui-se em sua acomodação ao prazer desse momento regressivo. Um indivíduo que já experimentou a autonomia do “eu” provavelmente reagirá com uma ansiedade elevada, diante da simples possibilidade de solutio. Isso ocorre por ter vivenciado, em sua trajetória, o risco de dissolução da autonomia do eu, que exigiu muito esforço para ser alcançada. Por essa razão, essa operação pode ser acompanhada da sensação de aniquilamento, muito embora sempre desponte uma nova forma revigorada.
A solutio pode ser observada também sob o aspecto dionisíaco, que traz o excesso e a busca do prazer desmedido, arrebatando as pessoas por meio de bebida, música, sexo e da loucura, dissolvendo os limites e o equilíbrio.
Durante o tempo transcorrido entre a última cena apresentada e aquela que apresentarei em seguida, João mergulhou em suas emoções (solutio), percorreu o seu trajeto para a individuação com as estações imprescindíveis – os desafios e os medos a serem enfrentados (separatio). Foi um período de questionamento profundo entre o que ele era de fato e como ele queria ser, entre puer e senex. Na vida concreta se estabelecia a disputa com o pai. A anima é a reguladora entre o puer e senex – é preciso viver a experiência dos opostos, em um suceder repetido e alternado, até conseguir integrá-las. Foram diversas separatios.
Nesse período, João estava saindo com uma moça que conheceu em uma de suas saídas secretas e afirma que “após ter saído com outra pessoa, ele redescobriu a namorada. A intimidade está mais intensa e muito mais prazerosa”.
Observamos a solutio na Cena 17 (Figura 8), que João intitula “Eu” e diz: “sinto uma sensação de mistério“.
João inicia a cena fazendo um lago com o auxílio de papel celofane para poder represar a água. Coloca Branca de Neve no centro desse lago, rodeada de serpentes. À sua frente, está Ariel e o manequim e, às suas costas, o Admiral Ozzel (vilão, personagem de Guerra nas Estrelas, que, ao fracassar em uma missão, é morto). À direita, está Santa Rita e, à esquerda, Santa Terezinha do Menino Jesus.
Branca de Neve, que antes era associada à namorada, agora representa a mãe de João. Ariel é associada à sua namorada e o manequim, ao modelo de mulher que ele deseja. Santa Rita é a protetora das causas impossíveis e dos desentendimentos em família, e Santa Terezinha é a protetora contra os momentos de perigo. Por meio da solutio, há uma reativação do feminino, na forma de uma mandala. João busca o renascimento, a re-significação da figura feminina por meio da unificação de todos os atributos que idealiza, bem como da figura masculina, que precisa morrer para renascer em uma forma mais genuína. Inclui também a busca do aspecto purificador, pois fica evidente o sentido de limpar as impurezas, lavar a sujeira física ou psicológica, os aspectos sombrios.
Essa operação tem dois efeitos: a matéria dissolvida experimentará o aniquilamento, levando à morte, muito embora a forma resultante represente algo novo e rejuvenescido. A vivência da solutio dissolve as cristalizações do eu, transferindo o foco para a instância do sentimento.
É exatamente isso que observamos a seguir. No intervalo, João confrontou-se com diversos pares de opostos de seu cotidiano. A prática da relação estava difícil e levava a sentimentos ambíguos e a momentos regredidos em que sua carência se tornava evidente. A relação entre masculino e feminino continuava em marcha.
João teve semanas difíceis, pois seu namoro terminou. Sua namorada não se sentia valorizada e percebida em suas necessidades dentro da relação a dois. Ele admite seu orgulho e a necessidade de ser amado e aprovado, colocando-se sempre em primeiro lugar no relacionamento.
A Cena 25 (Figura 9) recebe o título de “Renascimento”, e João diz: ”veio a ideia de morte, e as plantas jogadas na terra como renascimento. O cérebro precisa ser bem dirigido por algo sagrado, pois é duro mudar”. A mortificatio se realiza mais uma vez.
João posiciona totens de tribos aborígenes nos quatro cantos da caixa e espalha diversos orixás (personificação ou deificação das forças da natureza ou do ancestral divinizado), o Cristo Redentor, um ostensório e um cálice. Posiciona Branca de Neve, o “homem velho” e o Erê, formando um triângulo.
A cena transmite a sensação de ritual, com o anúncio da morte, por meio da caveira, e do renascimento, por meio do Erê, que é o intermediário entre o iniciado e seu guia. O triângulo representa o aspecto divino, a Trindade. São necessários dois elementos – masculino e feminino imperfeitos e, ainda assim, complementares – para produzir um terceiro, o novo renascido, como indicam os símbolos do cálice e do ostensório, utilizados na missa quando os fiéis confessam a sua predisposição para o pecado, mas, igualmente, a confiança na misericórdia de Deus.
Edinger (1995), ao longo do capítulo 3, dá como exemplos de solutio: banhos, imersão na água, batismo, natação, chuvisco, orvalho, aguaceiro, inundação, afogamento, mergulho, dilúvio, as sereias levando os homens para o fundo do mar, lavagens etc. Podemos observar essas imagens nas cenas de Sandplay.
Re-significando o feminino
A coagulatio é um processo que, por meio de resfriamento, converte líquido em sólido, transforma a prima materia em terra, confere formato e posições fixas. É acionada quando um determinado conteúdo psíquico ganha forma por meio de uma situação vivencial, gerando conflitos e tensões, mas trazendo consigo o desenvolvimento do “eu” e a consequente solidificação.
A coagulatio apresenta-se na fase inicial do processo de desenvolvimento da personalidade, pois se harmoniza perfeitamente com os arquétipos, que necessitam ser preenchidos com as experiências conscientes que irão coagular a imagem pré-formada. Na situação terapêutica, essa operação pode se manifestar em situações em que o paciente passa a assumir suas fantasias e ideias insconscientes, conscientizando-se das limitações pessoais e reais da vida. A coagulatio traz a sensação de submissão, porque nos vincula à realidade verdadeira. Essa operação pode igualmente ocorrer por meio do desejo e da vontade, pois estas são forças impulsionadoras da consciência, que promovem a experiência de vida e, por consequência, o desenvolvimento do eu.
As imagens do Sandplay coagulam o material do inconsciente e, por meio delas, é possível, a partir desse momento, ter uma relação objetiva, que acalma e recupera a paz interior. Nessa operação, o agente purificador é a consciência. Logo, ela representa a possibilidade de uma nova atitude em relação à matéria.
Esse momento pode ser observado na Cena 27 (Figura 10) à qual João dá o título de “Um pouco de paz” e conta que, agora, sente alívio, calma e equilíbrio. Faz um monte bem no centro da caixa, com uma pérola no cume e uma serpente em cada canto da caixa.
Nesse período, João busca conscientemente re-significar sua relação com a figura feminina. Conheceu uma moça com a qual ficou muito impressionado e conta que pretende construir um relacionamento em novas bases.
Os conteúdos sombrios que foram processados pela putrefactio na Cena 10 (Figura 10), a unificação dos diversos aspectos do feminino pela solutio na Cena 17 (Figura 8) e a transformação e o renascimento pela mortificatio da cena 25 (Figura 9) são agora coagulados, ganhando forma definida. É o momento de confrontar-se com os elementos sombrios, tomar consciência de suas atitudes diante do feminino, que é o princípio de Eros, que rege as relações, e elaborar esses conteúdos.
Podemos observar essa operação nas imagens que contenham: formas criadas com areia úmida, hóstia, mel, cera, balas, doces, manteiga, comida, corpo físico, roupas, igrejas e templos, cruz, sacramento da comunhão, mulher grávida, terra, a casa como lar, roupas, pombas, toda representação concreta de um desejo, vontade ou valor. Estes são exemplos dados por Edinger (1995) no capítulo 4.
A sublimatio é o processo de transformação da matéria em ar, por meio da volatilização: o que é inferior torna-se superior, deixa a terra e se dirige ao céu. Nessa fase, o paciente é capaz de avaliar e analisar objetivamente o problema sem se envolver emocionalmente, como se olhasse a questão de cima, considerando isoladamente um ou mais elementos de um todo. Tal distanciamento possibilita ao observador da situação uma perspectiva maior, mas também o coloca como espectador, com menos condição de agir sobre o que percebe.
Edinger (1995, p.160) diz que o movimento ascendente eterniza e o descendente personaliza – “sublima o corpo e coagula o espírito” – sendo ambos os sentidos igualmente indispensáveis. O movimento ascendente determina a sublimatio superior, simbolizando o resultado psíquico da nossa jornada de individuação e a transição para um nível superior da consciência transformada. Dessa forma, assume o significado de purificação, separando o que pertence ao espírito e o que pertence à matéria, erradicando a contaminação do inconsciente. Em um processo de crescimento e evolução, o indivíduo aprende a ver a si mesmo, superando as paixões pessoais e o mundo de forma universal, voltando suas ideias para o coletivo. É o processo de elevação das experiências concretas e pessoais em nível superior, transpessoal ou universal.
O movimento descendente, a sublimatio inferior atém-se à matéria genérica do trabalho terapêutico, às questões pessoais imediatas e às particularidades da vida concreta do indivíduo. Suscita imagens, no Sandplay ou em sonhos, relativas a movimentos de elevação, diversos tipos de voo (balão, avião, asa delta etc) e pode ser um indício de inflação do “eu” e da necessidade de descer, de tomar pé novamente na realidade e se enraizar.
Essa combinação dos movimentos de subida e descida gera o movimento circular, o movimento do processo psico terapêutico. Por meio de ciclos repetidos, os conflitos são elaborados, promovendo a consciência e a integração das oposições e, assim, o desenvolvimento acontece.
No plano psicológico, a circulatio é fundamental, porque promove o trânsito entre todos os aspectos do ser, incluindo suas polaridades opostas, levando ao equilíbrio de forças conflitantes. Utilizando os exemplos citados por Edinger (1995), podemos observar essa operação nas imagens do Sandplay que contenham: elevadores, escadas, montanhas, degraus, vôos, pássaros, asas, penas, aviões, levitação, alpinismo e torres.
Ampliação da consciência
No caso sob análise, não observamos imagens significativas de sublimatio. Mas encerro este estudo com duas cenas que considero importantes para a compreensão da trajetória de João.
A Cena 28 (Figura 11), recebe o título de “O olho de Deus”. João comenta: “me senti introspectivo, fiquei com vontade de olhar para dentro, senti vontade de chorar quando coloquei o símbolo cristão”.
Coloca a figura feminina e a partir dela faz um caminho com muitos vasos de flores que terminam em uma figura masculina. No centro da cena, dispõe o ostensório e, acima deste, formando um triângulo, está um unicórnio. Associa o unicórnio à força de um elemento divino e, em seguida, percebe que, no centro da caixa, desenhou a forma de um olho. Claramente fica impactado com a cena.
Mais uma separatio se apresenta. O unicórnio possui qualidades curativas em seu chifre. Esse símbolo em um dos vértices do triângulo, estando o masculino e o feminino nos outros dois, representa a função transcendente, a possibilidade de solução do conflito dos opostos.
Nesse período, João foi conhecer a família de sua nova namorada.
Na Cena 29 (Figura 12), vemos mais uma vez a busca da possibilidade da coniunctio. Essa cena recebe o título “Caminho”. João diz: “a forma como alisei a areia me dá a ideia da perfeição dentro da minha particularidade… Sentimento de amor e emoção”.
João coloca uma canoa com um índio remando. Atrás, está o “mago negro” e, à frente, um oratório e o xamã. Diz que agora se sente em condições de olhar e transitar pelos dois lados – luz e sombra. Ainda há a idealização da figura feminina, mas já surge um casal de aparência normal e corriqueira.
Em seu processo terapêutico, João teve a possibilidade de se conscientizar de alguns elementos sombrios, sendo que estes estão diretamente ligados à confrontação com a anima. Integrá-los requer vivenciar a relação com o sexo oposto de maneira mais completa. E é isso que João começa a experimentar em sua vida amorosa na relação com a atual namorada. Na relação transferencial, experimenta forte vínculo terapêutico, que dá sustentação aos conteúdos da análise, conteúdos esses que propiciam a amplificação e favorecem o movimento da psique, iniciando um processo de mudança do que antes estava estagnado.
Vemos, por meio desse caso, o quanto a alquimia é uma ferramenta valiosa para a interpretação das imagens do Sandplay, pois ambas revelam “uma espécie de anatomia da individuação”, como diz Edinger (1995, p.22). Por meio de suas imagens, tornam-se evidentes as experiências de transformação vividas durante o processo psicoterapêutico.
A simbologia das imagens alquímicas contribui para uma melhor compreensão das imagens do Sandplay, pois concretizam as experiências de transformação por que passamos durante o processo psicoterapêutico e facilitam a percepção do desenvolvimento do paciente, assim como nos advertem sobre o que esperar como desdobramentos. Dessa forma, estaremos mais bem instrumentalizados para acompanhar nossos pacientes na travessia de cada etapa de sua jornada.
Referências bibliográficas
EDINGER, E.F. (1995). A Anatomia da Psique: O Simbolismo Alquímico na Psicoterapia.Cultrix.
JUNG, C.G. (1986).Símbolos da transformação. Vozes, vol. V.(Original publicado em 1952)
JUNG, C. G. (1975). Memórias, Sonhos, Reflexões. Nova Fronteira.
KALFF, D.M. (2003). Sandplay – APsychotherapeutic Approach to the Psyche. Temenos.
[1]Artigo publicado no Journal of Sandplay Therapy, v. 20, n. 2, p. 41- 63, 2011, USA.
[2] Terapeuta de Sandplay certificada pela International Society for SandplayTherapy. Membro da International Association for Analytical Psychology e da Associação Junguiana do Brasil (AJB). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Terapia de Sandplay (IBTSandplay).